quinta-feira, dezembro 28, 2006

Viagem

Sento-me no pequeno banco, um orgulho enorme instala-se no meu peito, como é fantástico depois de tantos anos voltar a esta cidade que me viu nascer, voltar desta forma…
Aliso a barba olhando-me ao espelho, lá fora tudo parece uma revolução. Várias vozes gritam sem parar, sinto que para lá da minha porta cresce uma excitação sem controlo.
Apuro o ouvido, procuro perceber o que aquela multidão excitada diz.
Gritam o meu nome.
Visto as calças de cabedal, procuro organizar o meu pensamento, não consigo…
Já não sou eu que governo o meu corpo, corre lado a lado com o meu sangue um ácido que domina, é ele que me governa agora. Graças a ele vou transportar aquelas pessoas, vou dar-lhes o que vieram aqui buscar, vou servir-lhes sensações, vou colá-las a mim e voaremos juntos para um estado mais puro. Vão chorar, sorrir, talvez se sintam inspirados, talvez se arrepiem…
Sei quem sou, sei qual é a minha missão, sei como fazer, venham beijar-me a mão pois esta noite vou consumir-vos enquanto sou consumido.
Estalam luzes, observo as primeiras caras perto das grades, o meu nome é gritado estridentemente, atiro um “boa noite”, a música logo de seguida contamina todos.
Sinto-me entrar numa viagem que tão bem conheço mas que nunca é igual.
Salto para o meio deles, a meio desabotoada camisa é agora cobiça de muitos, toco em várias mãos, sinto o som subir atrás de mim.
Claramente este público é diferente a excitação é diferente, ou será que sou eu neste local especial que estou a dar algo diferente?
Volto a subir para o palco, paro a musica, paro tudo. Estou a chorar.
Fico quieto, observo aquela moldura humana, milhares gritam loucamente, alguns choram comigo, ajoelho-me.
Procuro tapar o rosto agora coberto de lágrimas, digo-lhes porque que me sinto pequeno perante tal espectáculo, digo-lhes que sou apenas mais um factor de entretenimento, que não tarda o tempo vai devorar-me.
Eles começam a cantar, cantam a minha música a uma só voz, cortam com o silêncio e sem qualquer instrumento oferecem-me uma melodia que nasceu dentro de mim.
Um a um os elementos da minha banda começam a tocar, arranco o micro do suporte e salto, salto o mais que posso!
Volto a ser leão, danço comigo próprio cantando, chego perto das grades beijo agora todos os que posso, arranco a camisa atirando-a longe, sinto que não sou humano, sinto que esta viagem é única.
Arranco para mais uma canção, parece-me que todo o mundo tem os olhos em mim, sou todo convulsões, sou todo espasmos, adrenalina corre em nós todos, o publico está perdido de entusiasmo, todos dançam, todos cantam, quase todos fumam…
Outra canção, e mais outra, esta viagem não pode parar, agarro na guitarra atiro-a para o público, descalço as botas atiro-as também, o som por trás de mim enlouquece-me, sim, devo estar louco mas esta viagem não pode parar!
Algumas pessoas despem-se também enquanto dançam, eu deixei de cantar apenas danço, a banda lá a trás toca desalmadamente, ao som daquela música inebriante todos dançamos, estamos unidos por qualquer coisa que não sei explicar, eu e o meu público somos um só.
Corro pelo palco, agora giro em volta de mim mesmo, procuro girar cada vez mais depressa, aquele som intenso toca cada vez mais depressa, mais depressa, mais depressa...
Caio estrondosamente no palco, perco os sentidos, o público estanca, o silêncio senta-se no trono.
A viagem não pode parar…

12 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom!
Valeu a pena esperar...
Beiji

pecado original disse...

Show must go on.

Lindo, Lindo

Abssinto disse...

Assim será com o Mick Jagger? Se fôr, é uma morte de artista, é bonita. abraço, Peter

Woman disse...

É diferente o público, porque é visto por outros olhos...

Beijo

pecado original disse...

Um excelente ano :D

Lara disse...

mais uma bela estória :)

beijo grande!

Anónimo disse...

Onde está o primeiro post deste ano?!
Beijo

Pierrot disse...

Enebriante.
De tirar o folego.
Quase posso imaginar o quadro.
Bonito texto pleno de acção e movimento.
Feliz 2007 e tudo de bom para ti.
Abraço
Eugénio

Lestat disse...

um beijo.

Lestat disse...

desculpa foi engano. pensava estar a comentar outro blog. podes apagar sff?

david santos disse...

Olá!
Já está tudo dito: maravilhoso.
Parabéns.
Obrigado.

Patrícia disse...

Belo texto, sem duvida !
Beijo *