sexta-feira, outubro 27, 2006

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira,
a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa.

terça-feira, outubro 24, 2006

Sorriso

Os paralelos, polidos, sujos, eram o espelho de uma Lua envergonhada.
As minhas botas velhas, prendiam-se ao chão…
Caminhava sem destino, eram duas da manhã, ouvia o barulho de vários cafés.
Tinha-me afastado da cidade, o pequeno caminho conduzia-me a uma zona de cultivo, estava muito vento…
Rapidamente os paralelos passaram a terra, não parei de caminhar, continuei absorto em pensamentos vários, estanquei!
O meu avô estava sentado numa pequena rocha, sorria para mim, enquanto eu caminhava para ele num misto de espanto, medo, e alegria.
Abracei-o, ele estava a chorar, sempre fora um homem de choro fácil, como eu.
O meu avô tinha morrido, à mais de dez anos, os últimos já quase totalmente invisual, tinha saudades.
Chorámos os dois, abraçados.
Disse-lhe que estava bem, que era feliz, mas ele já sabia isso tudo…
A paz dançava nos olhos do meu avô, ele estava bonito, talvez até um tanto mais jovem desde a ultima vez que o vira.
Como estava diferente, desde aquele dia, naquela cama de hospital.
Quis dizer-lhe que o amava, que éramos parecidos, que éramos da mesma casta, que infelizmente não pudemos conversar mais. Não era preciso…
Abraçamo-nos mais uma vez, desta vez com mais alegria, partimos cada um para seu lado, sem olhar para trás.
Caminhei tranquilamente para casa, a meio do caminho chorei outra vez, chorei de pura alegria, agradeci aquele fantástico momento, corri, corri muito.
Enquanto corria explanava a minha felicidade rindo e dançando com as árvores.
A lua brilhava agora intensamente, parei para a contemplar.
Acordei!
Acordei, acordei com um belo sorriso, disseste-me tu mais tarde, tinha sido apenas um sonho, um belo sonho…

sábado, outubro 21, 2006

A Gente Vai Continuar

"Tira a mão do queixo, não penses mais nisso
O que lá vai já deu o que tinha a dar
Quem ganhou, ganhou e usou-se disso
Quem perdeu há-de ter mais cartas para dar
E enquanto alguns fazem figura
Outros sucumbem à batota
Chega aonde tu quiseres
Mas goza bem a tua rota
Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar
Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém, não
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
E a liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo
Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar
Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar"
O Mestre Jorge Palma.

terça-feira, outubro 17, 2006

Rasganço

Rasgam-me, mas não me rasgam as memórias.
Começa a explodir em mim uma vontade de chorar, adeus Coimbra.
Todos riem à minha volta, caras quem nem sempre vi as vezes que gostaria, outras com quem partilhei momentos belos de pura felicidade, raros!
Jamais vos esquecerei, todos!
Oh, obrigado! Cidade mãe que me recebeste tão imberbe e fizeste de mim homem.
Dancei contigo tantas vezes!
Amiga Praça da Republica, soubeste sempre apanhar-me, quando o álcool me empurrou.
Quero hoje mais uma vez beber contigo Coimbra, vamos por uma última vez dançar de mãos dadas, olha, repara, estamos cá todos, todos os teus filhos bebem connosco.
Olha as nossas caras, ninguém quer saber de amanha, hoje somos teus, até deus Baco nos vir buscar.
Quero beijar todos esta noite, corro nu em busca da capa que sempre me embrulhou.
Abracem-me capas negras, gritemos alto, estamos em casa, Coimbra jamais nos faltará.
Aqui nunca me sinto perdido, quanto mais longe estou de ti, mais sinto que te pertenço.
Sei bem que irei chorar muito, enquanto a vida me o permitir, por ti, cidade mãe de toda a saudade.
Sei que o tempo não volta atrás, nem queria que voltasse, basta-me recordar e embrulhar-me na capa negra que nunca me faltou.
Rasgam-me, mas não me rasgam as memórias.

sábado, outubro 14, 2006

Lua

Escrevo sem pressa, afinal ninguém espera por mim, não tenho ninguém…
Gosto de me ir tocando, enquanto fantasio sobre a noite que não me espera, sobre a vida que não vivo.
Agradavelmente húmida, escrevo mais algumas páginas.
Na minha trama, sou sedutora, sou bela, e vivo com uma coragem que não consigo encontrar dentro de mim.
Fora do papel sou frágil, tenho medo.
Gostava de sair porta fora e amar qualquer um!
Gostava de me enroscar num banco de jardim, nua, esperar que um qualquer me possuísse, ali, debaixo da lua.
Corria uma pequena brisa, lá ao fundo ouvia-se o enrolar das ondas.
Empinei o meu rabo, duas gotas escorrem do meu sexo caindo na madeira já gasta do banco de jardim.
Sinto um homem chegar, não lhe vejo a cara, oiço o fecho, sou invadida por um membro quente, bom…
Aqueles movimentos repetidos alimentam-me a alma, enchem-me de prazer, não consigo conter-me, sou toda convulsões.
Grito de prazer, o meu som sobrepõe-se ao som do mar, parece-me agora que o mundo é perfeito.
Tento mudar de posição, quero ver os olhos do meu parceiro de dança, procuro virar a cabeça, mas logo uma mão grossa, suja, calejada, obriga-me a mergulhar no banco de jardim.
Arquejo…
O meu rabo agora ainda mais empinado, expõe uma ratinha rubra, sinto-me exposta como ela, não tenho medo!
O meu dominador, que na realidade é meu escravo, segura agora o meu pescoço enquanto me penetra com alguma violência.
Venho-me uma vez e depois outra, a droga do prazer corre dentro de mim, a minha cabeça não pensa, não pensa nada.
Aqueles movimentos continuam a repetir-se, cada vez mais depressa, cada vez mais loucos.
Um grosso pénis sai agora de dentro de mim, também já não precisava dele, um jorro quente cai-me nas costas, estremeci!
Que faço eu aqui? Quem é este homem? A medo digo-lhe para ir embora, para sair dali, para imediatamente se afastar.
Puxo as minhas calças, ainda envergonhada sinto o homem aceder ao meu pedido.
Já não corre em mim qualquer droga, minha cabeça está agora a mil, volto a ser o que o que sempre fui…
Tenho medo.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Flores

Claro que não te dou flores…
Flores acabam por murchar…
Flores a murchar são morte, assim como vidas que se amam um dia vão morrer.
Se ao menos pudesse dar-te flores e com elas toda a terra que as alimenta.
Talvez acreditasse, que também o amor pode continuar depois da morte.
E assim nada temeria.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Acordar

Estou farto desta vida
Nem para frente nem para trás
Tudo isto parece uma corrida
Onde não se consegue paz

Será que estou a ser duro
Será que não sei ver
Não será um mundo escuro
Onde ninguém quer perder

Terei eu que lutar
Ou simplesmente ter obediência
Acho que me estou a fartar
Deste mundo de violência

Isto é uma guerra brutal
Sem escrúpulos nem pena
Onde tudo é um matagal
E tu és uma planta pequena.

1996.

Tinha dezasseis anos que saudades…

sábado, outubro 07, 2006

Carla Bruni - quelqu´un m´a dit

Sentei-me, a voz dela dominava o quarto, será possível um homem apaixonar-se apenas por uma voz?
Claro que não, pensei.
Sorvo um café, que maravilha, o cheiro a cafeína é perfeito, os primeiros raios de sol invadem a minha janela.
Ela sai da casa de banho, tão fresquinha, traz apenas umas cuequinhas vermelhas ás pintas, masca uma pastilha, está feliz.
Coloco música e sorrio, de seguida, atiro a chávena janela abaixo, ficamos os dois em silêncio esperando ouvir o estilhaço no passeio. Partiu!
Olhamo-nos e rimos, somos duas crianças, lá no fundo sabemos que somos.
Ela saltou para a cama, começou a saltar na cama loucamente, aumentei o volume, fui saltar também.
Que perfeição, um peito redondo e firme salta, salta muito. Sorrimos.
A vida corre com força dentro de nós, corre-nos bem!
Fazemos dois meses de namoro, amo-a.
Morde o lábio de baixo, adoro, já emoldurei este pequeno movimento milhares de vezes.
O tempo é doce neste quarto, que maravilhoso estado de graça, que paz…
Faço-lhe uma rasteira, ela cai com estrondo no meio de mil almofadas, mergulho no seu corpo, que belo é…
Em menos de nada somos apenas um, no meu ouvido são segredadas parvoíces, rebolamos, lutamos, acariciamos, o tempo pára lá fora.
Sinto-me estremecer, não vou durar muito mais…
Unhas rasgam-me as costas, e então percebo tudo, tudo na minha cabeça faz sentido. Não é o sucesso, não é o dinheiro, nem sequer é a saúde, a vida são momentos, mas isso já eu sabia, não sabia é que a vida primeiro que tudo, é a coisa mais simples, a vida é amor!
Amor, unicamente amor, tão simples…

quinta-feira, outubro 05, 2006

Dançarino

Sou um dançarino, que apenas dança…
Não como, não bebo, acho que nem respiro, apenas danço.
Danço porque amo, sou feio e obtuso, não fui brindado com nada eloquente nesta vida, nunca fui encantador, dificilmente deslumbro, no entanto danço.
Danço porque não sei fazer mais nada, danço porque nasci com uma mais valia que ninguém vê!
Sei dançar!
Ou seja, sei viver!
Tenho esta capacidade de me apaixonar todos os dias, por vezes não reparo nas conversas, por vezes perco dinheiro, chego atrasado. Mas nunca deixo passar uma música que me seduz, se um poema me invade, imediatamente estanco, se o céu está azul eu já o contemplei, nunca é tarde para abraçar um amigo.
Distraio-me pelo meio de conversas, oiço muita gente mas não oiço ninguém, todos me chamam distraído.
Mas como posso ser eu distraído, se quando alguém na minha mesa, ou noutra, fala de amor, fala de encanto, fala das coisas simples, fala do copo de vinho partilhado, fala de laços humanos, eu acordo imediatamente!
Não, não sou distraído, sou bem atento, porque muitos batem na minha porta, e eu realmente não oiço bater, mas quando um qualquer me toca no ferrolho gritando partilha, largo tudo e de imediato estendo a passadeira.
Quando alguém entra na minha casa, e desinteressadamente quer mostrar-me novos mundos, imediatamente me torno seu escravo.
Quando vivo assim sou mais eu.
Vivo para estes momentos, em que a vida me toca.
E então choro, choro naturalmente e sinto-me terra, sinto integrado, sinto que faço parte, e nada me assusta, nem a morte!
Grito então alto, que amo a vida, que ela é feita de coisas belas, que faço parte do todo, não sou mais, não sou menos, simplesmente faço parte.

domingo, outubro 01, 2006

x.

Afinal, éramos tão felizes, porque não vieste dormir ontem, nem antes de ontem.
Já não sei que pensar, sinto tanta falta do teu cheiro, era tão bom falar contigo…Dava por mim a mergulhar nos teus olhos castanhos, transformava-me numa pasta, numa qualquer coisa preguiçosa, e sentia-me bem, sentia-me perfeita.
Quando andava contigo na rua de mãos dadas, sentia-me em casa, aliás tu eras a minha casa. Há três dias que não tenho casa!
Sou uma sem abrigo sem ti.
Espero por ti todas as noites, não tenho dormido na nossa cama, não consigo conceber a ideia de dormir nela sozinha.
Obviamente que a minha barriga não quer comer, já lhe disse que devia alimentar-se, tu não tardas deves chegar, mas ela insiste em não querer nada.
Mas o que mais me assusta, não é a minha barriga, é o que me diz o meu peito.
Tem-me dito coisas que não quero crer, tem-me dito que já não me amas, disse-me que te viu na rua com outra mulher, não posso acreditar…




Afinal, éramos tão felizes, sei que não fui dormir contigo ontem, não fui capaz.
Sinto-me lixo, sinto que não te mereço, não mereço mais as nossas conversas, odeio-me!
Nunca mais vou poder saborear a fundo o teu sorriso, nunca mais vou ser feliz, de certeza que não…
Merda para isto! Sou um fraco, quem me dera agora estar a nadar nos teus olhos azuis, perdi-os para sempre.
Hoje sou metade do que era, hoje o espelho reflecte fraqueza, sou pequeno, sou muito pequeno…
Antes de ontem dormi com outra mulher. Pior, passeei com ela toda a tarde, peguei-lhe na mão e sorri, sou mais um bandalho que não tem palavra, que não tem ideais, que não acredita.
Vendi-me por um corpo, por uma hora de prazer que agora amaldiçoo, troquei o efémero pela perfeição, troquei a nobreza pela vulgaridade.
Não te mereço, resta-me a lama, resta-me esconder-me de ti, pois não sou mais que um cão! Um cão que não se domina, sou o que pior se pode ser, um mísero corpo que se desloca sem propósito.
Perdi o norte, agora resta-me vaguear tristemente…